Átrio da Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
5 a 22 de Abril de 2016
A gênese desta exposição se encontra precisamente na busca de uma “simbiose cultural” de modo que ambos objetos da nossa investigação, identidade e gênero, consigam comunicar os aspectos mais significativos da nossa cultura “tucuju”, referência aos primeiros habitantes da região do estado do Amapá quando da chegada dos colonizadores. Não menos importantes foram os aportes derivados da cultura africana na região e o natural “entranhamento” com outras precedentes. O pão-trimônio Tucuju e a ressignificação do cozinhar objetiva, entre outros, a preservação do patrimônio gastronômico, sobretudo, imaterial da região norte do Brasil, com ênfase na região do Amapá, fronteira mais setentrional do país e o privilégio de sermos banhados pelo rio Amazonas e situados no “meio do mundo” através da Linha do Equador. Nossas origens históricas estão relacionadas com o vizinho estado do Pará de onde fomos desmembrados em 1943 como Território Federal do Amapá e transformado em estado da federação a partir de 1988, tendo como capital a cidade de Macapá, fundada em 1758 por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, então governador do Grão-Pará em plena vigência Pombalina. A ressignificação do cozinhar perpassa por uma postura diferente daquela assumida tradicionalmente em que a mulher se encontrava condicionada às funções exclusivamente do lar. O preparo do alimento era função imposta às mulheres de acordo com os ditames de uma cultura marcadamente autoritária onde o exercício do “cozinhar” refletia e reflete ainda em algumas culturas a condição de submissão do gênero feminino. Ressignificar o verbo cozinhar também envolve uma relação de afetividade com a escolha dos melhores ingredientes da culinária e o ritual do ‘servir’ o alimento preparado com a devida expectativa da boa avaliação ao mesmo tempo em que se celebra a vida. O olhar ressignificado acerca do “pão-trimônio” promove relações de preservação da memória o que por sua vez concorre ao fortalecimento da identidade regional e nacional. A arte de cozinhar assume, de igual modo, um compromisso de respeito às tradições ao rememorar o patrimônio herdado através da ousadia feminina, agora livre e não exclusiva desse gênero, consciente do seu papel na sociedade que se pretende transformar. Portanto, a nossa simbiose cultural se justifica na presente exposição ao resgatar a memória do patrimônio cultural do estado do Amapá por meio das mãos da mulher, isenta dos automatismos da obrigação como fada do lar, que se dispõe a preparar algumas das principais iguarias representativas da gastronomia amapaense. O presente desafio é também uma resposta aos novos paradigmas da alimentação “fast food” decorrente das relações globalizadas onde o fator tempo se confunde com o lucro acumulado das empresas do setor e uma provocação quanto ao tempo destinado à nossa saúde orgânica e social, pois, acreditamos que a cozinha gastronômica (tangível) e a epistemológica são aspectos indissociáveis do patrimônio cultural que pretende-se apropriar/preservar e por sua vez, fortalecer os laços identitários, em nosso caso, da cultura Tucuju, desta feita, sob o olhar ressignificado da mulher na complexa teia de exclusão social. Nosso entranhamento temático responde em certa medida ao tratamento dispensado aos bens culturais e a sua complexa atividade de preservação em uma realidade limitada sob vários aspectos, sobretudo, no que tange a construção de políticas públicas sensíveis a salvaguarda desses bens e tudo aquilo que representa para a permanência e fortalecimento das relações identitárias da região, onde o resgate da memória através das manifestações da cultura, joga um papel preponderante. O pão-trimônio tucuju é a síntese da memória e identidade de um povo. É o que permanece do passado, ou ainda, como nos disse Nora, “o que estamos fazendo com o passado” ... Deixamos, assim, nossa mensagem, na perspectiva de que todos possam assumir as rédeas do processo histórico, independentemente do gênero e muito menos das funções demandadas de um novo tempo onde se pretende paridade dessas relações. Necessário se faz inaugurar novos acessos pontuais onde antes prevalecia a marca de um dos papeis desempenhados pela mulher na labuta ordinária da segurança alimentar, circunscrita condicionalmente na ambiência da cozinha...Ressignificar o preparo dos alimentos implica também uma releitura da realidade onde antigos papeis devem ser dialogados e atualizados consoante os novos paradigmas que se impõem. E, finalmente, ressignificar é a possibilidade de novas apropriações de espaços sociais que ao longo do tempo tem se identificado exclusivamente com determinados grupos e que hoje, deve ser uma necessidade à livre manifestação da cultura e do progresso humano.